segunda-feira, 15 de novembro de 2010

sossego***

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como
sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a
substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de
milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança
sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo
mais porque vivo maior."

...

"São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo."

...

"Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da
minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o
que sente e o que vê.E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir."

... (a mais bela)...


"As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.
O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que loucos! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam..."


Bernardo Soares, Livro do Desassossego

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"Espalhem a notícia" :)

"Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
Espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
o ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado


Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher


A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
O ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou


Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança


Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher


Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta, é só
adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós


Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo do mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher"


Sérgio Godinho

terça-feira, 28 de setembro de 2010

AMIGO

"Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações da infância.
Preciso de um amigo para não enlouquecer, para contar o que vi de belo e triste
durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade.
Deve gostar de ruas desertas, de poças d´água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim. Preciso de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já tenho um amigo.
Preciso de um amigo para parar de chorar. Para não viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas.
Que bata nos ombros sorrindo e chorando, mas que me chame de amigo, para que eu tenha a consciência de que ainda vivo"


Vinícius de Moraes

quinta-feira, 26 de agosto de 2010



"Enquanto os homens falam de progresso
E há gente p'los caminhos sem sorrir
No mundo dos que sonham tudo tem um preço
E o tempo o tempo quer fugir

Arco-Íris, Arco-Íris
Quantos homens são precisos p'ra sonhar
Arco-Íris, Arco-Íris
Se quisermos o bom tempo vai chegar

Enquanto criticamos duramente
Esquecendo a culpa que há em todos nós
Doenças guerras fome são números somente
E a vida a vida não tem voz


Sete cores lado a lado
Como um sonho sem fim
Natureza obrigado
Por seres bonita assim

Enquanto os homens falam eu não ouço
Abraço o teu sorriso meu amor
Amigos vão e vem num lugar tão nossso
Respiro e o tempo é bem melhor"


Carlos Paião

sexta-feira, 30 de julho de 2010

angel!

http://www.youtube.com/watch?v=cJuqn5EBKSM&feature=related

terça-feira, 13 de julho de 2010

VOAR***

"Eu queria ser astronauta
o meu país não deixou
Depois quis ir jogar á bola
a minha mãe não deixou
Tive vontade de voltar a escola
mas o doutor não deixou
Fechei os olhos e tentei dormir
aquela dor não deixou.

Ó meu anjo da guarda
faz-me voltar a sonhar
faz-me ser astronauta ...e voar

O meu quarto é o meu mundo
o ecrã não é a janela
Não choro em frente á minha mãe
eu que gosto tanto dela
Mas esta dor não quer desaparecer
vai-me levar com ela

Ó meu anjo da guarda
faz-me voltar a sonhar
faz-me ser astronauta....e voar

Acordar meter os pés no chão
Levantar e dar o que tens para dar
Voltar a rir,voltar a andar
Voltar Voltar
Voltarei"


Xutos e Pontapés

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Teus olhos entristecem

"Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil."

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"